Lembramos de um ditado da sabedoria popular: “Quem abraça muito, pouco aperta”. Precisaríamos levar mais em conta a sabedoria popular em nossa vida, na vivência da fé e nas propostas da Igreja. Aplicar essa sabedoria nos conecta com duas realidades fundamentais, muitas vezes antagônicas: qualidade e quantidade. O que nutre e transforma é sempre mais a qualidade do que a quantidade. Em nossa sociedade consumista, onde tudo é medido em termos de quantidade, é difícil entender e aplicar esse princípio. O Evangelho nos convida a cuidar do “melhor”, não do “mais”. Também hoje Jesus reafirma isso, criticando a tendência de acumular riquezas.
Na parte está o todo: a mística ensina esta noção, e a física confirma sua plausibilidade. Se estivermos atentos à parte, encontraremos o todo. A tendência compulsiva de tentar abarcar e compreender tudo vem de nossa mente sempre insatisfeita. Na realidade, tudo está interligado, e em tudo está o todo. Aplicado ao Evangelho, podemos dizer que em cada perícope – narrativa evangélica – está toda a Boa Nova. Ao viver o presente, vivemos toda a temporalidade, no seu passado e futuro. Logo na Eucaristia, numa fração do pão consagrado está toda a Presença de Cristo.
Neste cenário, Jesus nos convida a sair do medo: “Não temas” é quase um refrão que se repete em toda a Bíblia. Paradoxalmente, a Igreja, durante séculos, incutiu medo nos fiéis: medo do pecado, do inferno, do juízo. Em resumo, medo de Deus. Hodiernamente ainda vemos as consequências dessa pedagogia, aonde nos deparamos com situações mal interpretadas devido as nossas feridas emocionais. Na realidade, Jesus nos liberta de todo medo. Com lucidez, o teólogo espanhol José Maria Castillo (1929 – 2023) ajuda-nos nesta reflexão: “Jesus não tolera o medo, nem quer que seus discípulos sintam a ameaça do medo. Assim, quem pretende crer em Jesus tem que ser gente sem medo. Por quê? Muito simples: porque o Reino não é uma promessa, é uma posse que já pertence a quem busca e quer crer em Jesus. E sim, falar do Reino é falar de Deus: o Reino de Deus é Deus. De fato, a expressão ‘Reino de Deus’ é uma forma de designar o próprio Deus. Portanto, o que Jesus afirma na realidade é imenso: Deus é vosso. De modo que Deus se entregou e está à vossa disposição. O dom de Deus aos seus crentes é o próprio Deus. Ele se nos deu. Que medo pode caber, se é assim?”
Jesus nos convida a despertar: “Estejam preparados, cingidos e com as lâmpadas acesas”. O que significa “despertar”? Podemos dizer que “despertar” é viver a partir de outro nível de consciência. Viver a partir da essência do nosso ser. Muitas vezes vivemos escravos do pensamento e das emoções, como se fossem nós: na realidade, nosso ser, nossa identidade, está além de tudo. Vivemos muito abaixo de nossas possibilidades. Despertar, traduz-se em “estar atentos”. A atenção – as “lâmpadas acesas” do Evangelho – é o caminho principal para viver despertos: vivermos a partir do nosso ser autêntico. A atenção nos permite assumir o que acontece dentro de nós – pensamentos e emoções – e o que acontece fora do nosso espaço vital. Ao compreendermos o que acontece – sem interferir a partir do nosso comportamento reativo e compulsivo –, tornamo-nos mais translúcidos. A verdade abre seu caminho. E a verdade nos liberta, como Jesus nos lembra (Jo 8,32). Despertar, então, nos faz viver uma vida real, livre e plena. Aprendemos a desfrutar da plenitude que somos.
O teólogo alemão Jürgen Moltmann (1926 -2024) afirmou: “Quem quer preencher seu próprio vazio interior ajudando os outros, apenas propaga o mesmo vazio. Por quê? Porque todo ser humano – ao contrário do que os indivíduos ativos gostariam – age para os outros mais com seu próprio ser do que com seu falar e agir. Somente quem encontrou a si mesmo poderá também doar-se a si mesmo.” Só ao enfrentarmos nosso próprio vazio, nossas feridas e nossos medos, a lâmpada brilhará com luz divina e nosso amor será autêntico e fecundo. Do contrário, cairemos num ativismo absurdo, em frustração, angústia e cansaço.
Pois bem, “onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração” (Lc 12,34). Amparados na compreensão que o Evangelho de Lucas nos oferece, poderíamos resumir também o caminho espiritual e nossa aventura humana na busca da intimidade divina, da amorosidade. Desde os primórdios, a sabedoria de todas as latitudes nos ensina a escutar o coração. O que nos move é essencialmente nossa afetividade. Somos feitos com “o molde do amor”. Fomos feitos para sentir, amar e ser amados. O que nos move é o “coração”, mais que a razão – embora ambos atuem em profunda sinergia e comunhão.
Para onde vai o nosso coração? O que amamos? O que nos faz sentir plenos? Possivelmente, onde se encontra a resposta destas questões estará o nosso tesouro. Indubitavelmente temos “muitos tesouros”, mas é fundamental aprender a distinguir e discernir a circunstância que ecoará no cerne divino da nossa alma. No nível terreno e mais superficial da existência, os “tesouros” são muitos: a família, os afetos, os amigos, os lugares, as memórias, certos acontecimentos ou experiências. No nível mais profundo, percebemos que só existe “um tesouro”: nossa identidade, o que somos. Talvez o caminho de aprendizado e crescimento espiritual precise nos levar a viver “os tesouros” a partir do “Tesouro”.
Os tesouros “terrenos”, em sua manifestação como revelação da luz divina, são transitórios e passageiros. Se nos apegarmos à manifestação como se fosse a essência, teremos sofrimento e dores que assolam toda a nossa corporeidade. Se vivermos e valorizarmos os tesouros “pelo que são”, eles nos levarão direto ao Único Tesouro, lugar da plenitude e da Paz.
Não obstante, o que são os tesouros? São manifestações passageiras do Tesouro Eterno. E sua função é revelar a luz divina e nos conduzir a esse Tesouro Único. Uma das maneiras para compreender este mistério é a atenção. Para muitos mestres, a atenção é a virtude essencial do caminho espiritual. Não é por acaso, que Jesus centra-se nesta parábola: “Estejam preparados, cingidos e com as lâmpadas acesas” (Lc 12,35).
Desenvolver a atenção espiritual permite-nos ver com mais profundidade e vai além da simples atenção mental ou capacidade de concentração. Significa a atenção da consciência que observa sem julgamentos, pressa e expectativas. Permite-nos atravessar a matéria, o superficial, o emocional e nos conectar com a própria luz: vemos o que os olhos não podem ver; vemos o que a mente não pode ver; vemos desde a alma, desde o coração. Todos somos chamados a visão mística, a qual se aprende e é exercitada pela atenção consciente. Gerando, pois, a paz de espírito, que eclode na alegria em Deus.
Neste ínterim, em face da busca existencial, qual é o objetivo final da nossa vida? Porque a consciência do nosso destino final tem muita influência na maneira como vivemos? Quem está convencido de que todas as pessoas no mundo são guiadas por um destino cego e tolo e, por fim, desaparecerão no vazio do nada, viverá de forma muito indiferente, sem muita energia ou esperança. Quem teme que, no final, terá de comparecer diante de um Juiz severo, que avalia e condena cada erro, caminhará com muito medo.
Entre os cristãos, vive uma imagem diferente sobre o que esperamos: nem desaparecer no nada, nem comparecer diante de um Juiz rigoroso; nós acreditamos e esperamos firmemente que nossa vida culminará em um encontro definitivo com o Senhor Bom Jesus vivo e ressuscitado, que nos ama. Esse encontro é frequentemente expresso no Evangelho com as imagens de “a vinda do Noivo” e de “sentar juntos à mesa do banquete nupcial, onde Ele serve”: o Noivo é aquele que organiza a festa do amor.
Isso significa que desejamos assumir nossa vida como uma preparação para um encontro com o Senhor do amor. E assim, organizaremos nossa vida desde já de modo que o amor ocupe o centro. Preparar-nos para “sentar juntos à mesa do banquete nupcial, onde Ele serve”, denota que intencionamos formar uma Comunidade de afeto, doação de si e serviço uns aos outros.
Cristãos são pessoas que acreditam e esperam que sua vida termine em um encontro “amoroso” com seu Senhor: isso já se percebe neles quando os encontramos. No entanto, a consciência do objetivo final pode se enfraquecer. Porque na jovem Comunidade da Igreja, surgiu rapidamente um problema a esse respeito, porque a vinda do Senhor demorava e continua até hoje demorando cada vez mais. A vida concreta e as tarefas terrenas, o cuidado necessário pelos filhos e netos, pelo alimento na mesa e um teto sobre a cabeça, fizeram e ainda fazem com que essa vinda do Senhor e a perspectiva do futuro, fosse esquecida.
Alguns textos da Escritura aspiram corrigir essa perspectiva e nos encorajam sobretudo a pensar naquilo que ainda podemos esperançar. Eles nos pedem para “estarmos vigilantes”, ou mais ainda, “prontos a cada momento” para ir com o Senhor quando Ele vier.
Para nós, seres humanos, que temos como primeira tarefa nos empenhar na vida concreta do presente, essa ênfase no “olhar para o futuro” pode parecer exagerada. Devemos então fugir do mundo, como algumas correntes – inclusive dentro da Igreja – propagaram? Não, essa não é a intenção do Evangelho. Não obstante somos convidados, em meio às nossas preocupações e compromissos diários, mediante a realidade, a refletir sobre a qualidade do nosso zelo, do nosso trabalho e do nosso engajamento no que concerne o nosso futuro.
Cristãos não são pessoas que se retiram completamente do mundo, mas sim pessoas que, em meio ao seu empenho, permanecem sempre críticas em relação ao mundo, especialmente se este quiser se fechar em si mesmo e viver separado de Deus. Desejam se comprometer fundados na fidelidade criativa com nossa sociedade, desde que ela esteja e permaneça ligada ao seu futuro, ao seu Criador e Senhor da Vida. Porque nós, fiéis, consideramos a terra como criação de Deus, que podemos administrar e para a qual recebemos a missão de sermos bons administradores da propriedade de Deus.
Tal visão influencia fortemente a maneira como nos engajamos em nossas tarefas diárias e realmente necessárias. Cristãos não querem agir como proprietários arrogantes, não como pessoas que acham que o mundo inteiro lhes pertence e que podem simplesmente tomar para si tudo o que conseguem açambarcar.
Nós, cristãos, queremos sempre tentar agir como administradores gratos de uma terra que é de Deus, e que pode se tornar cada vez mais uma boa terra, criação, como Ele sonhou, se cooperarmos com Ele. Também hoje é importante para os fiéis permanecer conscientes desse panorama de futuro, mesmo nas atividades mais fatigantes de cada dia. Logo, quem, como um bom administrador, espera finalmente uma Comunidade de amor, tentará, em tudo o que empreende ou administra, construir desde já uma Comunidade de amor. Quem finalmente anseia por uma Comunidade à mesa, já compartilhará sua mesa com os outros.
Do nosso objetivo final, já temos um antegosto aqui na Eucaristia, onde o Senhor circula para nos servir e nos convida a construir uma Comunidade de amor, partilhando-nos e doando-nos pelos outros, como Ele aqui faz por nós.
À guisa de conclusão, tomaremos emprestada as palavras do grande poeta brasileiro Mario Quintana, que nos inspira com o poema intitulado “as mãos de meu pai”:
As tuas mãos têm grossas veias
como cordas azuis
sobre um fundo de manchas
já da cor da terra –
como são belas as tuas mãos
pelo quanto lidaram, acariciaram
ou fremiram da nobre cólera dos justos…
Porque há nas tuas mãos, meu velho pai,
essa beleza que se chama simplesmente vida.
E, ao entardecer, quando elas repousam
nos braços da tua cadeira predileta,
uma luz parece vir de dentro delas…
Virá dessa chama que pouco a pouco,
longamente, vieste alimentando
na terrível solidão do mundo,
como quem junta uns gravetos
e tenta acendê-los contra o vento?
Ah, como os fizeste arder, fulgir,
com o milagre das tuas mãos!
E é, ainda, a vida que transfigura
as tuas mãos nodosas…
essa chama de vida –
que transcende a própria vida…
e que os Anjos, um dia,
chamarão de alma.
Fonte: Santuário do Bom Jesus da Lapa