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Em 2020, mais da metade (51%) da área destinada ao garimpo se encontrava em regiões sem título de exploração ou não autorizadas. Em 2019, 7,5% da produção nacional de ouro foi atribuída a áreas sem exploração. Quase a metade (45%) da expansão de 1.180 hectares do garimpo entre 2019 e 2020 ocorreu em áreas sem autorização para essa atividade. Estes dados, que indicam a falta de controle por parte do Estado para a cadeia nacional do ouro, fazem parte do trabalho de Bruno Antônio Manzolli, pesquisador associado de geoprocessamento do Centro de Inteligência Territorial, que ficou em segundo lugar na categoria Jovem da 4a Edição do Prêmio MapBiomas.
Em todo o país, de 2010 a 2020, o garimpo expandiu sua área em 62,5 mil hectares, enquanto a mineração industrial cresceu apenas 1,5 mil hectares. Para entender se essa rápida expansão do garimpo ocorreu em áreas autorizadas ou não, o pesquisador cruzou a classificação do uso da terra elaborada pelo MapBiomas com os dados da Agência Nacional de Mineração — em particular, as áreas de garimpo identificadas no interior dos processos minerários (PMs) citados na Contribuição Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM).
Os PMs que permitem a exploração de ouro, seja para fins de pesquisa ou exploração comercial, em março de 2020, englobavam uma área de 23,1 milhões de hectares (3% para lavra garimpeira; 1% para concessão de lavra; 96% para autorização de pesquisa). Porém, se considerarmos apenas os processos minerários citados como origem do ouro no ato de recolhimento da Contribuição Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM), eles somam uma área autorizada de 447 mil hectares, ou seja, apenas 1,9% da autorizada.
Os dados do MapBiomas, por sua vez, mostram um total de 97,8 mil hectares de área de extração de ouro em 2020 (5,5 mil hectares de mineração industrial e 92,3 mil hectares de garimpo). Já a área de garimpo que sobrepõe aos PMs autorizados em 2019 é de 45.159 hectares, ou 48,9% de toda a área de garimpo identificada no país. Isso significa que 51,1% da área de garimpo ocorrem em áreas não autorizadas, como Terras Indígenas, Unidades de Conservação de Proteção Integral e locais sem o título de lavra garimpeira vigente. A área de garimpo identificada em 2020 no interior de PMs citados na CFEM em 2019, por sua vez, é de 12.366 hectares – ou seja, apenas 13,4% de toda a área classificada como garimpo pelo MapBiomas.
Entre os anos de 2010 e 2019, foram mais de 39 mil registros de recolhimento da CFEM, indicando a produção de 737 toneladas de ouro no período mencionado. As maiores participações foram dos estados de Minas Gerais, Mato Grosso, Pará e Bahia, com 48%, 14%, 11% e 10% na quantidade produzida, respectivamente. Contudo, há diferenças significativas no regime de extração predominante nos estados. Entre a produção identificada em Minas Gerais, ou seja, sem a condição de sigilo minerário, 100% do ouro é originado no Regime de Concessão de Lavra, ou em fases anteriores (autorização de pesquisa), assim como na Bahia, onde praticamente 100% do ouro também é extraído sob o mesmo regime. Já nos estados de Mato Grosso e Pará, o Regime de Lavra Garimpeira (RLG) se, com 62% e 82% de participação, respectivamente.
O RLG favorece a exploração ilegal, já que as lavras podem ser facilmente usadas para lavar o ouro. Embora a lei preveja o início imediato da exploração após a publicação do título em um prazo de até 90 dias, salvo motivo justificado, das 1.615 publicações de lavra garimpeira entre 2010 e 2019, ou seja, das 1.615 autorizações a exploração de ouro, 692 processos podem não ter iniciado à exploração dentro do prazo estipulado. Com isso, fica aberta uma brecha para esquentar o ouro ilegal. Há ainda a transformação dos processos minerários e seus respectivos títulos obtidos em ativos patrimoniais em favor dos beneficiários dos respectivos processos.
“É no mínimo contraditório desejar regulamentar a mineração em novas áreas dado que os responsáveis pela lavra não iniciam a exploração após a publicação do título e devido a incapacidade do Estado em controlar e fiscalizar a situação dos processos minerários”, analisa o autor.
A falta de dados sobre a cadeia nacional do ouro reflete o completo descontrole que o Estado possui sobre a mineração de ouro, mas principalmente em relação ao garimpo. Embora seja o segundo minério mais exportado pelo país, o ouro não possui sequer um sistema informatizado de notas fiscais que permita o cruzamento de informações entre agências para combater o avanço do crime organizado na atividade.
Como o estudo mostrou que a quase totalidade da mineração que ocorre atualmente em terras indígenas, de forma ilegal, é de ouro, o trabalho também abordou legalização da atividade nesses territórios — algo que esteve na pauta governamental no começo deste ano por conta dos riscos à importação de fertilizantes decorrentes da guerra entre Rússia e Ucrânia.
“A aprovação do PL 191/2020 pode acarretar uma nova corrida do ouro dentro das Terras Indígenas, em busca pela primazia na exploração, e anistiar aqueles que já realizavam a exploração antes da regulamentação da mineração nesses territórios. O cerne da discussão deveria ser a elaboração de medidas de controle e fiscalização entre agências governamentais como ANM, IBAMA, ICMBio, Receita Federal e Polícia Federal em prol de mitigar os prejuízos socioambientais da exploração ilegal de ouro no país”, escreveu Bruno em seu relatório. “Graças à fragilidade da legislação na forma de garantir a origem do ouro extraído em garimpos, as frentes de lavra ilegais se expandem pelo território nacional, aproveitando do sucateamento dos órgãos ambientais como o IBAMA e o ICMBio e da própria ANM”, acrescenta.
Pará
O estado que mais sofre com a expansão garimpeira é o Pará, que acumulou 68.366 hectares destinados ao garimpo em 2020. O cruzamento de dados minerários com o Cadastro Ambiental Rural (CAR) e dados do MapBiomas mostra que 20,8 mil hectares de garimpo ocorrem em área com CAR, porém sem processo minerário com título de exploração (30,4%); 18,4 mil hectares estão em áreas sem CAR e sem PM, em fase que autoriza a exploração (27,0%); 16,7 mil ha estão em áreas com CAR e com PM autorizando a exploração (24,4%); e 12,5 mil ha em regiões sem CAR e com PM que autoriza a exploração (18,2%). Vale notar que a legislação separa a propriedade do solo e a do subsolo, ou seja, o detentor do título minerário pode ser uma pessoa diferente de quem possui a propriedade na região do processo minerário em questão.
Contexto
Alterações legislativas consolidadas a partir da criação do regime de lavra garimpeira, em 1989, e de atos normativos subsequentes permitiram a marginalização das características de rudimentaridade e artesanalidade que definiam a atividade garimpeira, culminando na definição atual da atividade, tomando por critério o ato administrativo que a regula — a própria PLG (Permissão de Lavra Garimpeira), e não mais o protagonismo de quem a executa ou as características técnicas da extração minerária em si. Hoje, a atividade passou a ser alvo de fortes investimentos capazes de modernizar as ferramentas usadas, como tratores esteiras, bombas hidráulicas, balsas e até mesmo aeronaves, máquinas que podem ultrapassar o valor de um milhão de reais. A alteração de maquinário do garimpo acarretou em duas consequências que ajudam a entender o atual cenário da exploração de ouro no país, que foram o aumento da participação na extração nacional de estados onde predomina o regime de lavra garimpeira, como Pará e Mato Grosso, que em termos de quantidade perdem apenas para Minas Gerais, e do rápido avanço das frentes de lavra, aumentando a cobertura da terra destinada ao garimpo a uma taxa de 6,5 mil hectares ao ano a partir de 2010 e alcançando áreas de alto valor ecossistêmico e protegidas, como Unidades de Conservação (UCs) e regiões onde a mineração não é regulamentada, como em Terras Indígenas (TIs).
A expansão do garimpo ilegal também é favorecida pela fragilidade da legislação minerária atual que, através do artigo 39, §4o, da Lei 12.844/2013, facilita a entrada do ouro extraído de forma ilegal no mercado lícito, usado por joalherias, instituições financeiras e até mesmo ser exportado. Isso ocorre porque a forma como a garantia de origem legal do minério é estabelecida constitui-se o elo mais fraco de toda a cadeia, pois é baseada na palavra do vendedor e na presumida boa-fé do comprador.
Sobre MapBiomas: iniciativa multi-institucional, que envolve universidades, ONGs e empresas de tecnologia, focada em monitorar as transformações na cobertura e no uso da terra no Brasil, para buscar a conservação e o manejo sustentável dos recursos naturais, como forma de combate às mudanças climáticas. Esta plataforma é hoje a mais completa, atualizada e detalhada base de dados espaciais de uso da terra em um país disponível no mundo. Todos os dados, mapas, método e códigos do MapBiomas são disponibilizados de forma pública e gratuita no site da iniciativa. O Prêmio MapBiomas, realizado em parceria com o Instituto Ciência, visa estimular e valorizar trabalhos que utilizem dados de qualquer iniciativa do MapBiomas.
Fonte: Agência EnvolVerde